4,6 milhões de americanos impedidos de votar por condenações penais; lei federal busca reverter exclusão
Na véspera das eleições de meio de mandato em 2022, cerca de The Sentencing Project revelou que 4,6 milhões de americanos estavam impedidos de votar — não por falta de interesse, mas por leis que negam o direito ao voto a pessoas com condenações penais. Isso representa 2% da população em idade de votar, e, mais preocupante: três em cada quatro dessas pessoas já cumpriram sua pena, vivem na comunidade e estão sob supervisão de liberdade condicional ou probation. O que acontece? Elas continuam excluídas. E o pior: essa exclusão não é acidental. É histórica, racial e intencional.
Uma exclusão que tem raízes na escravidão
As leis que impedem pessoas condenadas de votar não surgiram com a guerra às drogas. Elas foram criadas após a Guerra Civil, no período pós-Reconstrução, quando estados do sul — especialmente Alabama, Mississippi e Tennessee — desenvolveram códigos penais que criminalizavam comportamentos comuns entre homens negros, transformando-os automaticamente em eleitores ilegais. Era um mecanismo disfarçado de manter o poder político branco. Hoje, mesmo sem menção explícita à raça, o impacto é desproporcional. Um terço das pessoas privadas do voto por condenação são negras — embora representem menos de 15% da população total. Isso não é coincidência. É sistema.Flórida: o exemplo que explica a injustiça
Em 2018, os eleitores de Flórida aprovaram por ampla margem uma emenda constitucional que restaurava automaticamente o direito ao voto para ex-presidiários. Mas, em poucos meses, a legislatura republicana aprovou uma lei exigindo que essas pessoas pagassem todas as multas, taxas e custas judiciais antes de poderem votar. Resultado? Mais de 934.500 pessoas — quase 85% dos 1,1 milhão de desprivilegiados no estado — estão presas em uma armadilha financeira. Não há sistema para saber quanto devem. Não há como calcular se já quitaram tudo. E, mesmo que queiram pagar, muitos não têm emprego, nem renda. É como exigir que alguém compre um ingresso para entrar em um estádio... mas ninguém lhe diz o preço. Ou se o ingresso ainda está à venda.Variações absurdas entre os estados
Enquanto 22 estados restauram automaticamente o voto após a libertação da prisão, 15 exigem que a pessoa termine probation e liberdade condicional — e outros 11 impõem proibições de por vida para certos crimes. Em Georgia, a dívida é cancelada assim que a probation termina. Em Flórida, ela se torna uma barreira insuperável. Em Maine e Vermont, pessoas na prisão votam por correio. Sim, você leu certo: nos EUA, alguém pode votar enquanto está preso... se estiver em Vermont. Em outros lugares, até mesmo presos que ainda não foram condenados — e presumidamente inocentes — enfrentam obstáculos burocráticos para votar. Só em Chicago e Houston existem seções eleitorais dentro das prisões. Em todo o resto? É um jogo de azar dependendo do xerife de cada condado.
As mulheres e os custos ocultos
Muitos esquecem: mais de 20% das pessoas privadas do voto por condenação são mulheres. E elas frequentemente enfrentam dívidas judiciais ainda maiores — por conta de taxas de supervisão, programas de reabilitação obrigatórios e multas por infrações menores. O Fines and Fees Justice Center aponta que quatro estados condicionam a restauração do voto ao pagamento de obrigações financeiras. É uma forma moderna de escravidão por dívida. E não é só um problema de direito político. É um problema de pobreza, gênero e raça entrelaçados.A nova esperança: o Inclusive Democracy Act
Em 6 de dezembro de 2023, a congressista Ayanna Pressley (MA-07) e o senador Peter Welch (D-VT) apresentaram o Inclusive Democracy Act — a primeira proposta federal da história dos EUA que busca acabar com o desenfranchisement por condenação em eleições federais. Se aprovada, a lei garantiria o direito ao voto a todos os cidadãos, independentemente de estarem na prisão, em liberdade condicional ou já tendo cumprido pena. Bruce Reilly, da organização Voice of the Experienced (VOTE), disse: "É hora de o governo nacional reconhecer que o direito ao voto é inalienável para uma democracia legítima." Phi Nguyen, do Demos, chamou a situação de "uma mancha na democracia americana".
Por que isso importa para todos nós
O número de pessoas excluídas do voto por condenação já superou a margem de vitória em eleições decisivas — como as disputas pelo Senado em 2022. Em estados como Georgia e Arizona, onde a diferença entre candidatos foi de menos de 10 mil votos, 4,6 milhões de pessoas com direito ao voto estão silenciadas por leis arcaicas. E isso não afeta só os condenados. Afeta a legitimidade de toda a eleição. Quando metade da população de um estado não pode votar por dívidas que nem sabe o valor, como podemos dizer que a representação é justa?Qual é o próximo passo?
O Inclusive Democracy Act ainda precisa passar pelo Congresso. Ainda não tem apoio republicano. Mas o movimento cresce: estados como Nevada e Colorado já aprovaram leis para restaurar o voto automaticamente. O debate está mudando. O que antes era tratado como "questão de ordem pública" agora é visto como questão de direitos humanos. A pergunta não é mais se devemos restaurar o voto — mas por que demoramos tanto para fazer isso.Frequently Asked Questions
Como a lei de desenfranchisement afeta comunidades negras e latinas?
Negros e latinos são desproporcionalmente presos e condenados nos EUA — e, por isso, são os principais afetados pelas leis de desenfranchisement. Embora negros representem 13,5% da população, respondem por 33% das pessoas privadas do voto. Em estados como Alabama e Mississippi, um em cada 13 adultos negros não pode votar. Isso reduz sua influência política, perpetua a marginalização e enfraquece a representação em cargos públicos.
Por que Flórida é um caso emblemático?
Flórida tem o maior número de eleitores desenfranchised do país — 1,1 milhão. Em 2018, os eleitores aprovaram a restauração automática do voto, mas a legislatura impôs exigência de pagamento de multas. Como não há sistema para calcular essas dívidas, 934.500 pessoas ficaram presas em uma armadilha financeira. Isso transformou um direito constitucional em um privilégio econômico — algo que a Suprema Corte já chamou de "inconstitucional" em outros contextos.
Pessoas presas sem condenação podem votar?
Sim, tecnicamente sim — mas na prática, quase nunca. Apenas algumas grandes prisões, como em Chicago e Houston, têm seções eleitorais funcionais. Nos demais locais, os xerifes decidem se permitem ou não a votação, e muitos ignoram ou bloqueiam o acesso. Isso é absurdo: alguém preso por acusação — e ainda presumido inocente — tem mais dificuldade para votar do que alguém condenado e solto.
O que o Inclusive Democracy Act propõe exatamente?
O projeto de lei federal propõe que todos os cidadãos norte-americanos tenham direito ao voto em eleições federais, independentemente de estarem na prisão, em liberdade condicional ou já terem cumprido pena. Ele também exige que os estados criem mecanismos para restaurar automaticamente o voto após a liberação e proíbe qualquer exigência de pagamento de multas como condição para votar. É o primeiro passo concreto para corrigir uma injustiça de 150 anos.
Essa exclusão realmente afeta os resultados eleitorais?
Sim. Em eleições de 2022, a margem de vitória em disputas decisivas pelo Senado em estados como Georgia e Arizona foi menor que 100 mil votos. Com 4,6 milhões de pessoas excluídas, é impossível dizer se os resultados refletem a vontade real da população. Em muitos casos, o voto dessas pessoas poderia ter mudado o equilíbrio de poder no Congresso.
Existe algum precedente histórico de restauração do voto em larga escala?
Sim. Em 2019, o estado de Kentucky, liderado pelo governador democrata Andy Beshear, restaurou o voto para mais de 140 mil pessoas com condenações penais. Em 2020, Nevada e Colorado fizeram o mesmo. Esses estados provaram que a restauração não aumenta a criminalidade — e, na verdade, melhora a reintegração social. A única resistência vem de quem se beneficia do status quo.